quinta-feira, 16 de abril de 2020

Exílio

A quem confiar minha tristeza?
(A. Tchekhov, Contos)

I
espreita meu olhar o chá de maçã
as bordas da memória abrem as dobras
exala erva-cidreira e de aromas borda
meus olhos ancorados na hora anciã

da liquidez emerge Rô e o odor
aporta em ervaçal cidreiro e maçã;
Rô, por que vem assim na bebida anciã
com teus silêncios outra vez me aborda?

de aromas embebidas minhas mãos vãs
correm e abraçam Rô que se aflige à tona:
desliza pelas bordas, escorre e entorna
a liquidez sagrada do antigo elã

e a bebida me olha morna, e transborda
em espiral circula e exala maçã.

II
A espiral aromática volteia e foge aflita ao meu abraço
e o chá de maçã ressurge amarelento lago apático:
paisagem de sombras e névoas sobre águas mortas;
o mundo assume desertos e um ar glacial corta o acaso...

Vieram das águas-cidreiras punhais rubros de fogo
e me queimaram a orla vivente entre ervas murchas.
Grito e meus gritos giram em esferas de exorbitâncias:
estou sendo empurrado para fora do mundo a gritos loucos

A humanidade morreu colapsada e não existe mais...
Meus gritos ecoam deserto só adentro as próprias águas:
não há mundos cujos ondes os pés andem a razão do seu pisar
e retorno à noite escura do nascituro acaso suposto

Estou terrivelmente sem rosto, fugiu-me a minha pessoa
aquela que me estipula humano descora e se estiola
e a conjuntura exata do eu se afoga falto de seu andar
Estou embalado em inexistência ao reverso humano

Grito o eu nascituro de mim no mundo das formas
Sumidas catedrais de estrelas e pinturas esquecidas no tempo
bramidos ecoam adentro minha morte acesa
E as mandíbulas cansadas estalam e empurram ossos

Aborto insabido depois de nascido na sorte do abraço
meu grito rouco não se sabe rouco e ressoa louco
Fugiu de mim a minha pessoa, e não tenho rosto... 
Abre-se o nunca estar no meu peito onde ninguém mora

Minha fada nutriu-se na disjuntura das formas aladas
Ensurdece ouvidos humanos que não escutam gritos roucos
Humano meu de jornadas rumo aos impossíveis do ser
virou-se para si mesmo e se olha no espelho dentro insciente

Terão pena desse louco a morrer em seu moinho de loucura?
a essência do grito agoniza o eu que não consegue nascer
Sou a massa informe de mim num aborto de impossíveis
Nesse degredo aéreo vergado na abundância abissal do inexistir

E não há janelas por onde olhar o mundo e dar-lhe o rosto
Aberto à beleza que supus haver nas caladas do silêncio
Espero ao enfim o brusco nada nesse etéreo que me atordoa
que me eleve às esferas de inexistência a mundos outros...

o dourado chá efervesceu em fogo e queimou as folhas sidas
E tudo são silêncios de ausências na amarelecência opaca
revoluteia o grito evolvido no oblívio que nunca foi
estampa-se na espiral do tempo e o óbvio viaja a sua órbita.

Estrelas? O que são estrelas nesse berço de ausências inumeráveis?
No súbito deste haver derrama-se o nunca-mais inscrito na ausência;
são folhas murchas que caem na lonjura dos mundos sepultos
E me adornam as vestes tumulares os ocasos a mais implícitos.

Ando às bordas de minhas águas abortado ao que pudera ser,
morri exilado em minha terra ao que indefensa assomo enseja
vivos que se foram e só deixaram atrás de si o silêncio dos mortos,
os rastros de seus aromas, idos sem notícia prévia de que iam.


Vilma Silva

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