Figuras sintáticas ocultas e a construção do sentido
(Um pouco da poesia de Francisco Settineri)
(Um pouco da poesia de Francisco Settineri)
O doce amor que a ti eu devotei
Que o doce amor que a ti eu devotei
Embora tenha sido atormentado
Talvez não tenha sido bom soldado
Mas impeliu-me à guerra como lei!
Brilhou-me com seu estro peregrino
Insurge-se a abalar-se na fraqueza
Recobra-se das cinzas à nobreza
E canta em alvo leito um belo hino!
Mas vejam! Vejam bem! Eu mesmo estive!
Estive a ultrapassar tantas fronteiras
E fui a navegar a noite inteira
Um mastro a naufragar até o Estige!
Pra ver de tanto amor que mais importa
Se a boca que me beija em seu sudário
Se o toque que faltou em meu diário
Se a mão que não bateu em minha porta
Anima-se nas sombras a canalha!
Eu sempre quis de ti ser grande rei
Que o doce amor que eu sempre devotei
Te sirva, nesta hora, de mortalha!
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“O
Doce Amor que a ti eu devotei” é uma peça poética que nos surpreende pelo
rompimento que nela se faz no nível das quebras sintáticas e demais recursos
expressivos utilizados no poema.
Seleciono
dois momentos em que o nível da expressão impacta tanto pela surpresa quanto
pelos efeitos estéticos que alcança:
Mas vejam!
Vejam bem! Eu mesmo estive!
Estive a
ultrapassar tantas fronteiras
E fui a
navegar a noite inteira
Um mastro a
naufragar até o! Estige
Os
versos ressoam a dor de uma alma a peregrinar em busca da criatura amada. Ficamos
tentados a ver nesse sujeito lírico uma representação do mito de Orfeu. Mas
jamais essa será uma leitura fechada. O que se pode dizer é que a evocação do
mito converge para um duplo significado:
1-
O sujeito lírico que fala no poema é Orfeu.
2-
O sujeito lírico que fala no poema é um ser humano, de qualquer tempo e lugar, a
vivenciar um sofrimento semelhante ao relatado no mito de Orfeu. Ele vive o seu
inferno de querer trazer da morte o ser amado que perdeu.
É
dois poemas em um: é sobre o sofrimento da perda relatada no mito. É também um
poema a dizer que esse drama humano é inespacial e atemporal.
OS SIGNOS SONOROS
O signo sonoro é uma categoria estética de outro nível. Na poesia ganha
seu domínio próprio de significação e adquire estatuto estético à parte.
Integrado à palavra, a esta agrega ritmo e musicalidade. Por essa razão, o
signo sonoro enlaçado ao conceito verbal, habita noutra esfera, a esfera da
emoção que leva o leitor/fruidor a outro campo de percepção e fruição. O efeito
conseguido no ritmo, andamento e musicalidade é marcante no conjunto, impõe-se
à emoção do leitor, que capta o efeito de imediato. É algo que vai além das
palavras e seus significados verbais. No verbal
se insinua um signo sonoro que nos envolve em seu ritmo, e os ecos das
emoções desse sujeito lírico nos arrebata.
Mas vejam! Vejam bem! Eu
mesmo estive!Estive a ultrapassar tantas
fronteiras
O verbo “estive” repetido no início do segundo verso com igual tempo
verbal marca um eco expressivo e uma ênfase. Revela um sujeito lírico tomado de
emotividade: a alma desse sujeito exclama e grita sua dor nos ecos sonoros
desses versos. Inevitavelmente, ficamos envolvidos em sua vivência apaixonada.
QUEBRA SINTÁTICA
Pra ver de tanto amor que mais importaSe a boca que me beija em seu sudárioSe o toque que faltou em meu diárioSe a mão que não bateu em minha porta
Os
três versos que seguem ao primeiro “Pra ver de tanto amor que mais importa” são
todos de uma oração composta, as chamadas orações adverbiais, no presente caso
chamada Oração adverbial condicional, encabeçada pela conjunção “se”.
A repetição de uma mesma estrutura sintática revela um novo eco que se
expressou em outra dimensão do signo verbal. Está na dimensão das categorias
sintáticas e da capacidade da língua de criar estruturas expandidas do interior
de si mesma.
Não
apenas isso. Sabemos que as orações
adverbiais condicionais são estruturas complexas compostas de pelo menos duas
orações conectadas. No nosso caso, essas orações estão ligadas pela conjunção
“se”.
Sabemos também que essas estruturas subordinadas apresentam duas
orações. Uma delas completa o sentido da outra. Nesses versos está faltando a
oração que completa a estrutura “Se a boca que me beija em seu sudário... A
conjunção “se” indica haver uma circunstância que no poema não foi
materialmente indicada.
Essa
omissão, porém, não impede que a circunstância seja inferida. O sintagma exigido
pela subordinada está ausente da estrutura material do verso, mas está
implícito no nível profundo da linguagem. Portanto, os significados estão
perfeitamente subentendidos.
Essa
quebra é notável e só poderia mesmo ocorrer em uma forma literária, no nosso
caso, a poesia. Vejamos bem o quarteto e sua estrutura profunda.
Pra ver de tanto amor que mais importaSe a boca que me beija em seu sudárioSe o toque que faltou em meu diárioSe a mão que não bateu em minha porta
Os versos que seguem ao primeiro (Pra ver de tanto amor que mais importa) compõem uma estrutura complexa composta de três
unidades, duas explícitas e uma oculta:
1- [...] que
mais importa2- Se a boca que
me beija em seu sudário...; Se o toque que faltou em meu diário...; Se o toque
que faltou em meu diário...; Se a mão que não bateu em minha porta...3-
oculta/subjacente
As reticências assinalam a estrutura que falta: a
condição que impediu a mão de bater à porta.
ESTRUTURA SINTÁTICA DAS ORAÇÕES CONDICIONAIS
As orações condicionais compõem duas orações: Irei/ se você me
acompanhar.
A segunda oração apresenta a condição para que a
ação da primeira ocorra. Essa condição está indicada pela conjunção “se” (a
ação de “ir” não poderá ocorrer se não houver a companhia do sujeito “você” da
segunda oração).
Vemos aqui que a circunstância “se você me
acompanhar” é a condição necessária para que a ação “ir” da primeira oração
ocorra. Sabemos que a oração condicional encabeçada pela conjunção “se” só se
completa mediante outra oração. Pertence aos chamados períodos compostos em que
atuam pelo menos duas orações, uma funciona como complemento da outra.
No caso do poema, o complemento da oração
condicional está ausente:
“Se a boca que me beija em seu sudário...”
Temos aqui possibilidades variadas de preenchimento
dadas pelo eixo paradigmático, o vocabular. Mas essa escolha será determinada
pelos significados já dados nos quartetos anteriores e no posterior. Poderíamos
ter entre essas possibilidades, por exemplo:
.......................................que mais importaSe a boca que me beija em seu sudário... (está fria)
Estive a ultrapassar tantas fronteiras
E fui a navegar a noite inteira
Um mastro a naufragar até o! Estige
“está fria” compõe um sintagma verbal ao verso, de
acordo com o campo semântico sugerido no poema.
O mesmo vale
para os dois versos seguintes...
se o toque que
faltou em meu diário... (já não pode ser vivido)
Se a mão que não bateu em minha porta... (me calou...)
A falta desses complementos deixa ao leitor uma abertura para a
imaginação completar. Ele não vai fazê-lo objetivamente porque não precisa. A
psique compreende que houve uma falta. A falta é que importa, não o que faltou.
A falta é tud o para o sujeito lírico que a sente e a enuncia. Porém, se o sujeito lírico não a enuncia, o campo semântico sugerido
pelas palavras “sudário”, “Estige”, “mortalha” leva de imediato a inferir que a
falta do sintagma refere-se a uma ausência causada pela “morte”. Mas mesmo aqui
a morte pode ser simbólica ou metafórica. Há muitas variáveis em que o conceito
de morte pode situar-se.
Há uma perda e toda perda é uma morte que se processa no campo das
emoções.
A falta desses complementos deixa ao leitor uma abertura para a imaginação completar. Ele não vai fazê-lo objetivamente porque não precisa. A psique compreende que houve uma falta. A falta é que importa, não o que faltou. A falta é tud o para o sujeito lírico que a sente e a enuncia.
O que importa verdadeiramente é que o
vigor do poema está justamente na falta do complemento oracional. Indica a
ausência da criatura amada que não mais se faz presente no campo vivencial do
sujeito lírico. Materialmente ausente, o signo verbal que a referencia e lhe dá existência também tem de estar ausente.
Sobretudo, trata-se do indizível. Isso
só pode ser comunicado com a omissão do signo para um ser humano cuja
existência é afirmada pelo verbo que a certifica perante seus iguais.
...
Se o toque que faltou em meu diário ...
Se a mão que não bateu em minha porta ...
Se a boca que me beija em seu sudário ...
...
A expressividade desse poema está
principalmente nessa construção sintática incomum. A ausência já está
sub-repticiamente no contexto do discurso poético. A grandeza desse poema se faz nesses detalhes que não estão isolados, mas integrados ao todo.
Pode-se ir adiante e seguir na leitura
crítica desse poema e sua riqueza de significados, sua harmonia rítmica, sua
musicalidade envolvente. Entre as variáveis, importa mencionar a beleza dos versos
finais: essa do amor a servir de mortalha à criatura amada.
Que o doce amor que eu
sempre devotei
Te sirva, nesta hora, de
mortalha!
Aí está o amor cobrindo a morte, agasalhando-a.
Esses dois versos finais equivalem a um poema
inteiro. É um fecho magnífico, tal a força emotiva que deles se desprendem. A
morte não apaga o amor.
Por último,
É bom lembrar aqui que essa estrutura
poética é recorrente na poesia de Francisco Settineri. Encontramos a mesma
estrutura nos poemas a seguir:
Imperturbável
Até que as brumas as lindas as findas
Dormirei multidão sorrindo
E até que o verde a tarde aconteça
E errante endoideça
Voz arfante apelos aflitos
Os nós a trama dos medos
Os dedos imperturbados aos gritos
Os aedos os santos e os mitos
As tumbas glosarão os delitos
De não dizer teus segredos
Até que o verde a tarde aconteça
Essas sintaxes quebradas são muito expressivas. Deixa algo sem dizer,
mas está implícito. É formalmente requintado e simples ao mesmo tempo pela
musicalidade que modula os versos em uma harmonia rítmica envolvente.
Ocorrências
Acontece que chuva de verão.
Fora.
Dentro que ocorre turbilhão congelado.
Então meia lua, à noite
e o silêncio infinito
de uns olhos azuis fitando, fitando...
O efeito poético é impactante. Fica um branco aberto como uma bruma pairando
sobre o poema. Algo não foi dito, mas a cena está toda ali dominando o
cenário... Intuitivamente incorporamos o significado humano desses olhos que
fitam, fitam, fitam —
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Vilma Silva
junho/2022
11 Poemas de Vilma Silva – DITIRAMBOS (wordpress.com)
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