terça-feira, 27 de junho de 2023

         Figuras sintáticas ocultas e a construção do sentido 
          (Um pouco da poesia de Francisco Settineri)


O doce amor que a ti eu devotei
 
Que o doce amor que a ti eu devotei
Embora tenha sido atormentado
Talvez não tenha sido bom soldado
Mas impeliu-me à guerra como lei!
 
Brilhou-me com seu estro peregrino
Insurge-se a abalar-se na fraqueza
Recobra-se das cinzas à nobreza
E canta em alvo leito um belo hino!
 
Mas vejam! Vejam bem! Eu mesmo estive!
Estive a ultrapassar tantas fronteiras
E fui a navegar a noite inteira
Um mastro a naufragar até o Estige!
 
Pra ver de tanto amor que mais importa
Se a boca que me beija em seu sudário
Se o toque que faltou em meu diário
Se a mão que não bateu em minha porta
 
Anima-se nas sombras a canalha!
Eu sempre quis de ti ser grande rei
Que o doce amor que eu sempre devotei
Te sirva, nesta hora, de mortalha!
 
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“O Doce Amor que a ti eu devotei” é uma peça poética que nos surpreende pelo rompimento que nela se faz no nível das quebras sintáticas e demais recursos expressivos utilizados no poema.
 
Seleciono dois momentos em que o nível da expressão impacta tanto pela surpresa quanto pelos efeitos estéticos que alcança:

Mas vejam! Vejam bem! Eu mesmo estive!                            
Estive a ultrapassar tantas fronteiras
E fui a navegar a noite inteira
Um mastro a naufragar até o! Estige

Os versos ressoam a dor de uma alma a peregrinar em busca da criatura amada. Ficamos tentados a ver nesse sujeito lírico uma representação do mito de Orfeu. Mas jamais essa será uma leitura fechada. O que se pode dizer é que a evocação do mito converge para um duplo significado:

1- O sujeito lírico que fala no poema é Orfeu.

2- O sujeito lírico que fala no poema é um ser humano, de qualquer tempo e lugar, a vivenciar um sofrimento semelhante ao relatado no mito de Orfeu. Ele vive o seu inferno de querer trazer da morte o ser amado que perdeu.

É dois poemas em um: é sobre o sofrimento da perda relatada no mito. É também um poema a dizer que esse drama humano é inespacial e atemporal.

OS SIGNOS SONOROS

O signo sonoro é uma categoria estética de outro nível. Na poesia ganha seu domínio próprio de significação e adquire estatuto estético à parte. Integrado à palavra, a esta agrega ritmo e musicalidade. Por essa razão, o signo sonoro enlaçado ao conceito verbal, habita noutra esfera, a esfera da emoção que leva o leitor/fruidor a outro campo de percepção e fruição. O efeito conseguido no ritmo, andamento e musicalidade é marcante no conjunto, impõe-se à emoção do leitor, que capta o efeito de imediato. É algo que vai além das palavras e seus significados verbais. No verbal se insinua um signo sonoro que nos envolve em seu ritmo, e os ecos das emoções desse sujeito lírico nos arrebata.

Mas vejam! Vejam bem! Eu mesmo estive!
Estive a ultrapassar tantas fronteiras

O verbo “estive” repetido no início do segundo verso com igual tempo verbal marca um eco expressivo e uma ênfase. Revela um sujeito lírico tomado de emotividade: a alma desse sujeito exclama e grita sua dor nos ecos sonoros desses versos. Inevitavelmente, ficamos envolvidos em sua vivência apaixonada. 

QUEBRA SINTÁTICA

Pra ver de tanto amor que mais importa
Se a boca que me beija em seu sudário
Se o toque que faltou em meu diário
Se a mão que não bateu em minha porta

Os três versos que seguem ao primeiro “Pra ver de tanto amor que mais importa” são todos de uma oração composta, as chamadas orações adverbiais, no presente caso chamada Oração adverbial condicional, encabeçada pela conjunção “se”. 

A repetição de uma mesma estrutura sintática revela um novo eco que se expressou em outra dimensão do signo verbal. Está na dimensão das categorias sintáticas e da capacidade da língua de criar estruturas expandidas do interior de si mesma.

Não apenas isso. Sabemos que as orações adverbiais condicionais são estruturas complexas compostas de pelo menos duas orações conectadas. No nosso caso, essas orações estão ligadas pela conjunção “se”.

Sabemos também que essas estruturas subordinadas apresentam duas orações. Uma delas completa o sentido da outra. Nesses versos está faltando a oração que completa a estrutura “Se a boca que me beija em seu sudário... A conjunção “se” indica haver uma circunstância que no poema não foi materialmente indicada. 

Essa omissão, porém, não impede que a circunstância seja inferida. O sintagma exigido pela subordinada está ausente da estrutura material do verso, mas está implícito no nível profundo da linguagem. Portanto, os significados estão perfeitamente subentendidos.

Essa quebra é notável e só poderia mesmo ocorrer em uma forma literária, no nosso caso, a poesia. Vejamos bem o quarteto e sua estrutura profunda.

Pra ver de tanto amor que mais importa
Se a boca que me beija em seu sudário
Se o toque que faltou em meu diário
Se a mão que não bateu em minha porta

Os versos que seguem ao primeiro (Pra ver de tanto amor que mais importa) compõem uma estrutura complexa composta de três unidades, duas explícitas e uma oculta:

1- [...] que mais importa
2- Se a boca que me beija em seu sudário...; Se o toque que faltou em meu diário...; Se o toque que faltou em meu diário...; Se a mão que não bateu em minha porta...
3- oculta/subjacente

As reticências assinalam a estrutura que falta: a condição que impediu a mão de bater à porta. 

ESTRUTURA SINTÁTICA DAS ORAÇÕES CONDICIONAIS

As orações condicionais compõem duas orações: Irei/ se você me acompanhar. 

A segunda oração apresenta a condição para que a ação da primeira ocorra. Essa condição está indicada pela conjunção “se” (a ação de “ir” não poderá ocorrer se não houver a companhia do sujeito “você” da segunda oração).

Vemos aqui que a circunstância “se você me acompanhar” é a condição necessária para que a ação “ir” da primeira oração ocorra. Sabemos que a oração condicional encabeçada pela conjunção “se” só se completa mediante outra oração. Pertence aos chamados períodos compostos em que atuam pelo menos duas orações, uma funciona como complemento da outra.

No caso do poema, o complemento da oração condicional está ausente:

“Se a boca que me beija em seu sudário...”

Temos aqui possibilidades variadas de preenchimento dadas pelo eixo paradigmático, o vocabular. Mas essa escolha será determinada pelos significados já dados nos quartetos anteriores e no posterior. Poderíamos ter entre essas possibilidades, por exemplo:

.......................................que mais importa
Se a boca que me beija em seu sudário... (está fria)

        “está fria” compõe um sintagma verbal ao verso, de acordo com o campo semântico sugerido         no poema.
 
        O mesmo vale para os dois versos seguintes...
        se o toque que faltou em meu diário... (já não pode ser vivido)
        Se a mão que não bateu em minha porta... (me calou...)

      A falta desses complementos deixa ao leitor uma abertura para a imaginação completar. Ele          não vai fazê-lo objetivamente porque não precisa. A psique compreende que houve uma                  falta. A falta é que importa, não o que faltou. A falta é tud  o para o sujeito lírico que a sente e       a enuncia.
     
     Porém, se o sujeito lírico não a enuncia, o campo semântico sugerido pelas palavras “sudário”,    “Estige”, “mortalha” leva de imediato a inferir que a falta do sintagma refere-se a uma ausência     causada pela “morte”. Mas mesmo aqui a morte pode ser simbólica ou metafórica. Há muitas        variáveis em que o conceito de morte pode situar-se.

    Há uma perda e toda perda é uma morte que se processa no campo das emoções.

   O que importa verdadeiramente é que o vigor do poema está justamente na falta do                      complemento oracional. Indica a ausência da criatura amada que não mais se faz presente no         campo vivencial do sujeito lírico. Materialmente ausente, o signo verbal que a referencia e lhe         dá existência também tem de estar ausente.
 
   Sobretudo, trata-se do indizível. Isso só pode ser comunicado com a omissão do signo para um       ser humano cuja existência é afirmada pelo verbo que a certifica perante seus iguais.
   ...
   Se o toque que faltou em meu diário ...
   Se a mão que não bateu em minha porta ...
   Se a boca que me beija em seu sudário ...
   ...
 A expressividade desse poema está principalmente nessa construção sintática incomum. A       ausência já está sub-repticiamente no contexto do discurso poético. A grandeza desse poema se     faz nesses detalhes que não estão isolados, mas integrados ao todo.
 
 Pode-se ir adiante e seguir na leitura crítica desse poema e sua riqueza de significados, sua   harmonia rítmica, sua musicalidade envolvente. Entre as variáveis, importa mencionar a beleza   dos versos finais: essa do amor a servir de mortalha à criatura amada.
 
 Que o doce amor que eu sempre devotei
 Te sirva, nesta hora, de mortalha!
 
Aí está o amor cobrindo a morte, agasalhando-a.
 
Esses dois versos finais equivalem a um poema inteiro. É um fecho magnífico, tal a força emotiva que deles se desprendem. A morte não apaga o amor.
 
Por último,
É bom lembrar aqui que essa estrutura poética é recorrente na poesia de Francisco Settineri. Encontramos a mesma estrutura nos poemas a seguir:
 
Imperturbável
 
Até que as brumas as lindas as findas
Dormirei multidão sorrindo
E até que o verde a tarde aconteça
E errante endoideça
Voz arfante apelos aflitos
Os nós a trama dos medos
Os dedos imperturbados aos gritos
Os aedos os santos e os mitos
As tumbas glosarão os delitos
De não dizer teus segredos
Até que o verde a tarde aconteça
 
Essas sintaxes quebradas são muito expressivas. Deixa algo sem dizer, mas está implícito. É formalmente requintado e simples ao mesmo tempo pela musicalidade que modula os versos em uma harmonia rítmica envolvente.
 
Ocorrências
 
Acontece que chuva de verão.
Fora.
Dentro que ocorre turbilhão congelado.
Então meia lua, à noite
e o silêncio infinito
de uns olhos azuis fitando, fitando...
 
O efeito poético é impactante. Fica um branco aberto como uma bruma pairando sobre o poema. Algo não foi dito, mas a cena está toda ali dominando o cenário... Intuitivamente incorporamos o significado humano desses olhos que fitam, fitam, fitam

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Vilma Silva
junho/2022
@vilmamsil | Instagram





terça-feira, 18 de outubro de 2022

Aventura de amor em Amorim

  

entre os rios e os vales e os céus silentes
caminhamos lado a lado de mãos dadas:
dourada imagem bordada em Amorim
 
no solo fértil deitamos nossos grãos
enlaçados pela luz do céu de abril
entre os rios e os vales e os céus silentes
 
no espelho das águas o meu olhar viu
a semente nascer de uma longa espera:
dourada imagem bordada em Amorim
 
alheia ao dia que se queria eterno
a noite apagava o sol e espalhava estrelas
Entre os rios e os vales e os céus silentes


a lua expandia a luz em teu olhar
lume dourado que meu olhar colheu:
dourada imagem bordada em Amorim
 
pelas manhãs reluzia a rósea aurora
essa nau vítrea nos levou ao sem-fim
entre os rios e os vales e os céus silentes:
dourada imagem bordada em Amorim


Vilma Silva

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Águas Claras

 

Meu rio vai subaquática me Espelhei
Figura líquida a navegar em mim, Sou
Fronteiras entre os eus que me habitam, Sei


O barco humano que na orla vai Me vê
como fantasma de rio a Irreal Figura
sob a pele baça de minhas Águas Turvas


Eu que me sei haver em minhas Águas Claras
O jardim humano em que me Floresço Rosa
Movo em ondas lentas minhas Águas Claras

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Vilma Silva

Quintilhas

 

Barcaça nossa casa
Asas no oásis da paz
Nossa vez seja acesa
Nenhuma esquivez
Ali nunca se fez
                                                 
Se a aridez perpassa
A barcaça alça a graça
Asa de voar abraça
Rigidez nenhuma vez
Altivez somente vês
 
O logro! A aguda adaga  
Traspassa e queima!
O dourado fogo acende
Laça a bonitez em brasa
E a sua infinita graça
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Vilma Silva

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Quadro

 

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No teu olhar meu infinito pousa

Minha rota de amar
Desenham-me tuas mãos.
O corpo infinda obra
Entorna relíquias
Hora santa a relampejar estrelas
A derramar feitiços no chão
 
No meu olhar teu infinito pousa

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Vilma Silva

Levedura

  

Meu silêncio é a levedura do meu verso
E demora a brotar em flor o ardor do belo
Fujo ao mundo e em solitude me converso
Em meu silêncio rasgo véus e te revelo
 
Adormecida exalo o som e a voz se altera
Oração que ao humano teço em epopeia
O meu silêncio abre as portas para o belo
Desse sentir que sob a vida a alma gera
 
Navega o verso em águas planas de mistério
A palavra nomeia o mundo e cria elos
Se meu amor não alcançou mover o amor
Dos meus dedos brota amor em versos belos
 
O corpo humano é um vaso abrasador
Ecoa sons e em meus dedos cria elos

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Vilma Silva


Olhos

 

    Triste
Percorro
     O rosto
Triste
     No
Espelho
 
Aguíferos
     Meus
Olhos
     Chovem
Verso
     Inverso
 
Lagos
     Meus
Olhos
     Vertem
O rio
     Reverso

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Vilma Silva