sábado, 18 de abril de 2020

 
Deuses e Diabos

assentaram praça em meu corpo
fazem uma algazarra infernal
 
bate-bate
gritarias sem fim
socos e pontapés
 
a tanta malemolência estou em farrapos
 
concluo:
é guerra pelo poder
 
deuses e diabos
são iguais
in tutto e per tutto

não vou mais ligar necas para esses dois
Ponto Final 






 


Origem


fogo            ruivo
nas
veias               rio

pavios          
na pele         uiva
avia              a volitiva
                    chama

a chama                                           
ateia             o fogo                                             
                    trama

o fogo
trama            o fogo           



Vilma Silva

Corpo transitivo


papiro sem data
o tear atemporal e inespacial
tece signos na memória celular:
as muitas pinturas no rosto fulgem;

do luzente sol
os olhos dentro recolhe
o intransitável caminho da luz;

entre as mãos aprisiona
as espirais do olhar:
tear das galáxias;

extrato do não-tempo
entre quadraturas
argila moldada:
da sorte humana a figura;


Vilma Silva







Corpo luminoso


 
Loura tocha em chamas
O Sol
pendurado no pôr do dia
Clara pérola
 
O vento toca sua flauta
 
...ssssssssssszzzzzzzzzzzsssssssssssszzzzzzz...
 
fulvo Sol
fios de pérolas
sobre o dorso do vento
o que os olhos não podem ver
ouro
 
Seu ondular de véus
Mar alado no zimbório azul
o nada não ver
oro
 
O não haver olhos
ao corpo da beleza que tateia e uiva
de um lugar onde no Oeste
choro
 
...ssssssssssszzzzzzzzzzzsssssssssssszzzzzzz...
 
endoidece os olhos cegos ao haver
aroma e som, tato e degustação
do que nem corpo nem cor nem imagem
deixa ver
 
De que vale teu nome, a que no meu seio
nomeio
vento em verbo feito vela e véu mar tela do haver
malha de não saber?
 
Tecido do tempo a escorrer nas mãos
que engendram
o corpo ausente na forma presente
e tece o puro não ver
 
na voz do verbo te vejo o não saber
a forma te fala no som que cinzela
seu corpo em música, argila de lhe dar
sopro de ti que em mim é fonte e ser
o corpo a cor o cheiro que me habita
 
nos olhos do nada ver
teu corpo vocal canta
o inarticulado do ser
leve uivo no azul
o puro ser

...zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz...
usssssssssssssssssssssssssssssu...


Corpo


i

jazigo
signo contíguo
já sigo

desígnio
signo exíguo
jazigo

II
habito
o corpo exíguo
jazigo

implícito
ao corpo contíguo
algo ínsito
desígnio

já sigo
o algo fito
signo


Vilma Silva


Brincantaria


Ouro escolho tolo
Toldo ouro pouco
Ouro toldo mouco
Indouto ouro

Doutro ouro escolho
Pouso noutro ouro
Toldo ouro douro
Douto ouro

outro ouro acolho
tudo cousa ouro
Ouro todo envolto
Ouro toldo ouro
---
Crisol
fervedouro
criadouro d’ouro
louro sol


Vilma Silva

Usos do verbo ir



tecedor volante
teço asas volitivas ao
onde-for
voo a me levar ao não-vou
onde-vou
                   
***

tecelão volitivo
teço asas volantes ao
onde-não
voo a me levar ao
não-vou

***

tecedor volitivo
teço asas volantes ao
voo
onde-for
             vou


Vilma Silva

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Exílio

A quem confiar minha tristeza?
(A. Tchekhov, Contos)

I
espreita meu olhar o chá de maçã
as bordas da memória abrem as dobras
exala erva-cidreira e de aromas borda
meus olhos ancorados na hora anciã

da liquidez emerge Rô e o odor
aporta em ervaçal cidreiro e maçã;
Rô, por que vem assim na bebida anciã
com teus silêncios outra vez me aborda?

de aromas embebidas minhas mãos vãs
correm e abraçam Rô que se aflige à tona:
desliza pelas bordas, escorre e entorna
a liquidez sagrada do antigo elã

e a bebida me olha morna, e transborda
em espiral circula e exala maçã.

II
A espiral aromática volteia e foge aflita ao meu abraço
e o chá de maçã ressurge amarelento lago apático:
paisagem de sombras e névoas sobre águas mortas;
o mundo assume desertos e um ar glacial corta o acaso...

Vieram das águas-cidreiras punhais rubros de fogo
e me queimaram a orla vivente entre ervas murchas.
Grito e meus gritos giram em esferas de exorbitâncias:
estou sendo empurrado para fora do mundo a gritos loucos

A humanidade morreu colapsada e não existe mais...
Meus gritos ecoam deserto só adentro as próprias águas:
não há mundos cujos ondes os pés andem a razão do seu pisar
e retorno à noite escura do nascituro acaso suposto

Estou terrivelmente sem rosto, fugiu-me a minha pessoa
aquela que me estipula humano descora e se estiola
e a conjuntura exata do eu se afoga falto de seu andar
Estou embalado em inexistência ao reverso humano

Grito o eu nascituro de mim no mundo das formas
Sumidas catedrais de estrelas e pinturas esquecidas no tempo
bramidos ecoam adentro minha morte acesa
E as mandíbulas cansadas estalam e empurram ossos

Aborto insabido depois de nascido na sorte do abraço
meu grito rouco não se sabe rouco e ressoa louco
Fugiu de mim a minha pessoa, e não tenho rosto... 
Abre-se o nunca estar no meu peito onde ninguém mora

Minha fada nutriu-se na disjuntura das formas aladas
Ensurdece ouvidos humanos que não escutam gritos roucos
Humano meu de jornadas rumo aos impossíveis do ser
virou-se para si mesmo e se olha no espelho dentro insciente

Terão pena desse louco a morrer em seu moinho de loucura?
a essência do grito agoniza o eu que não consegue nascer
Sou a massa informe de mim num aborto de impossíveis
Nesse degredo aéreo vergado na abundância abissal do inexistir

E não há janelas por onde olhar o mundo e dar-lhe o rosto
Aberto à beleza que supus haver nas caladas do silêncio
Espero ao enfim o brusco nada nesse etéreo que me atordoa
que me eleve às esferas de inexistência a mundos outros...

o dourado chá efervesceu em fogo e queimou as folhas sidas
E tudo são silêncios de ausências na amarelecência opaca
revoluteia o grito evolvido no oblívio que nunca foi
estampa-se na espiral do tempo e o óbvio viaja a sua órbita.

Estrelas? O que são estrelas nesse berço de ausências inumeráveis?
No súbito deste haver derrama-se o nunca-mais inscrito na ausência;
são folhas murchas que caem na lonjura dos mundos sepultos
E me adornam as vestes tumulares os ocasos a mais implícitos.

Ando às bordas de minhas águas abortado ao que pudera ser,
morri exilado em minha terra ao que indefensa assomo enseja
vivos que se foram e só deixaram atrás de si o silêncio dos mortos,
os rastros de seus aromas, idos sem notícia prévia de que iam.


Vilma Silva

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Bricandeira


vi se já
se já vi
já vi se
vi ce ja


se já vi
já vi se
vi ce ja


se    vi
          ce
ver se ja
    


quarta-feira, 1 de abril de 2020

Imersão


I
não mais a deambulação vã de tempos perdidos,
hoje sou o regresso ao luar do meu céu,
a minha corte ergue-se em meio às marés,
viaja águas anciãs das muitas eras.

Meus cabelos brancos assistem ao ir
das águas que não cessam,
aos ventos tempestuosos,
às lonjuras acumuladas dos mares.

Vou adentrado na anciãenadade atemporal
dos rios que em si mesmos navegam.


II
navio e águas se navegam
num só corpo espécie que sou.

Rasgo com meu olhar avesso
os ventos tempestuosos,
meu chão é nenhum,
sou das águas e dos ventos.

Os ares suspensos entreabro,
acaricio com pés felinos o chão onde piso,
cheiro o pó, tateio o vazio que me rodeia
e o preencho com o que sou de mim.




Efígie


precipito-me na falta
anunciada entre umbrais
na manhã chuventa,

distende-se na hora ao redor
a presença da ausência,

a lacuna tece o
sendo-não-é
pretérito que nunca
ontem existiu presente
desenho do hoje inexistir.

Feixe de espectros

                Aos poetas e artesãos do mundo

A ti o teu incêndio,
o fogo liquefeito de tua argila prima –
nave de imagens e sensações
reino de tormentos e alegrias
mais arquétipos de antigos reinos;

no teu rio de fogo
todos os livros –
os que houve, os que haverá,
letras a se juntarem... Enfim,

criador e criatura exalam-se ex útero –
espelhos duplos
a se olharem fundo infindo

um à imagem e semelhança do outro:
a duplicidade que aconteceu
por um desdobrar do ser

Estesia


a minha espécie é irmã do caos,
e entre rochas as rosas
cores exímias abrem asas
aos olhos inquisidores meus

impulsos de estar rosa,
rota ao oculto lume ascende
voar de seta que o querer latente
pisar a seda acossa,

e já os pés entre paredes-rosa
a fundir sedas quantas outra tez:
exala o cetim hora que me fez
o rosa-estar de rosa veludosa.

era uma vez

eu sulcava as leitosas vias
o céu e seu véu azul-turquesa
sugava a vertigem que me provia
estrelas
a via esteta da beleza

o vulto para além do que eu via
orava meu silêncio ao pé das eras
o florescer da semente
a hora santa que somente
me fez silêncio e rosa incorporada


Poesia


Peço um poema
para expressar meus passos
sobre este planeta,
calço dos homens
e vida a crescer
  roseada e bela
de estéticas universais

Debruço-me a inventar
a estrutura mágica
d’onde epigrafar a estética
  da vida
e exponho apressada
as vísceras rodopiantes
  de minhas energias primas

Terei encontrado as estações
  d’onde elas vibram
no decompor das leis humanas?
...............................................

A história que ainda não escrevi
(E que não escreverei, por certo)
guardada intacta
na transface de mim
palpita inquieta
em impresenças continuadas
no meu rosto
que não é meu.

Invento a forma
e toda ela guarda
uma ressonância funda
de aléns
O que nela me convida e me congrualiza?
.................................................

 A imatéria quero trazer
              ao existível
que para ser forçoso é
executar-se por meio da matéria
neste poema
que a falseia embora,
que apenas excogita sombras
do desejo humano,
que apenas se compõe
em simulacro de um original
em perene por-fazer
..............................................

A poesia
  é a marca dos meus pés
à beira de mundos incriados,
entre orlas de trevas
  grito ao que não há:
mostra-me o intervalo,
o nulo espaço do teu salto ao que há!
..............................................

o fogo transmigrador
  crepita e treme
no inespacial vórtice
  em que centelhas
são as sentenças
  virtuais da existência.
..............................................

Desde a centelha inicial
estala a febre
              do ato adâmico
no sopro e na maçã articulada:
              comei
neste fruto a vossa consciência,
              bebei
neste sopro o som articulador
              do mundo.

E sossegai
  vossos vórtices convulsos
na materialidade organizada,
  espacial e dada
no sopro da palavra:
  criai!

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