quinta-feira, 17 de junho de 2021

 Caderno de Cordélia 



Interlocutores de Cordélia

I think I will do nothing 

for a long time but listen

and accrue what I hear into myself

 [walt whitman. Song of myself.]

 

Es la palabra del criador personificada.

Esta palabra de regeneración es aquella simiente de la promisión

o el cielo de los filósofos, que brilla en las luces inextinguibles de los astros.

[La alquimia de los maestros]

 

Não tenha acanhamento de suas qualidades de menino. 

As iluminações que os outros, quase todos, acham de louco.

[osman lins. Nove Novena]

 

Por libido entendo a energia psíquica.

Energia é a intensidade do processo psíquico ...

o conceito de Brahma, graças a todos os seus atributos e símbolos,

coincide com aquela ideia de uma força dinâmica ou criadora que chamei “libido”.

[c.g. jung. Obras.]

 

Post tenebras, spero lucen

[cervantes. Frontispícío da 1.a ed. do Quixote, O cavaleiro da triste figura, 1605.]

 

Quem, ignorando, ofendeu, em rigor não é delinquente;

Quem, ignorando, amou, em rigor não é amante

 Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima e não vidros

 Amar vidros, cuidando que são diamantes, não é fineza de amor, é ignorância.

Amar para amar: isso é fineza de amor.

[Vieira. Sermão do Mandato]

 

Ego sum qui sum

[Gênesis. Palavras do deus abrasado em fogo na sarça ardente]

 

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Introito

                         Cerne em nós                                  

 

ego sum

qui sum

don´t say

idlewords

livre pulsa

minha libido

avessa a essa liturgia e a toda jornada que me

escreve antes de mim e de meu consentimento

o ruído da história humana é desatino, todas as

fórmulas de existir inventadas são brutalidades

Eu sou Cordélia

a filha proscrita

de Rei Lear

esse a quem

William

ensandeceu

a sanha

minha saga

está escrita

nas vísceras

como aranha

das próprias entranhas

exalo minha urdidura

 

 oh deuses embriagantes

em vossas aras deposito

eu: Fogo entre sarças

ego              sum

qui              sum

   

Personalidade 

 

O estilo é a fisionomia do espírito — disse o iluminado Shopenhauer.

Cada palavra é uma obra poética — disse o estético Borges.

O estilo é o homem — disse o sintético Buffon.

Essa é toda gramática em que me apuro — diz a triunfante Cordélia.

 

Afirmação

 

don’t say me idle words!

ando dentro

da escuridão cheia de luz.

 

amaldiçoada ou não,

atravesso as labaredas humanas deste mundo hipócrita

e alcanço o eu sou o que sou.

 

afirmo

minha vida selvagem

a luz que vibra

no escuro mundo em que sou

nós

 

II

salve, ó deuses,

em vossas aras

deposito meu exílio

 

  

trânsito das palavras 

II

Ó meu coração avesso à liturgia

e a toda jornada que me escreve antes de mim

e do meu consentimento

II

o amor abre todas as portas

e deixa fluir a força motriz

que engendra na alma o ouro

anima mundi nostra

II

na minha voz o meu olhar

nos meus ouvidos minha acolhida

                                                            minhas sobejas posses

                                                                            dou

 o que ninguém pode tomar

II

só posso dar o que é meu

é meu o meu amar a quantos ame

e dôo

do que possuidora sou

e todo amor que dou

continua em minha posse

II

II

sou Cordélia

a filha proscrita de Rei Lear o trágico.

a minha libido livre

verbaliza minha escrita

II 

o  ruído da história humana é desavença

todas as fórmulas de existir inventadas soam religião

meu coração rejeita essa liturgia

e toda inscrição que me escreve antes de mim

e do meu consentimento.

II

II

eu sou Cordélia,

a filha proscrita de Rei Lear, o trágico.

A minha libido livre

das conjunções dissonantes humanas,

sigo a saga escrita em minhas próprias vísceras.

II

II

Meu coração é simples e pulsa forte,

rejeita a percepção deformada do mundo:

nada pode resistir a uma alma mansa e desarmada.

II

II

eu tenho a força de mil

porque meu coração é puro*

 

 

A solidão de Cordélia

 

frívolas janelas abrem os folhos

de seus reposteiros rotos:

vigiam-me olhos de prescrever sinas.

alheia, Cordélia anda em seu olhar

virado para dentro:

you cannot discern the signs

of the time

in the silence of me:

II

eu sou Cordélia,

levo em meus alforjes

os punhados das dores alheias

que em mim fez-me a dor.

sozinha ando no ermo 

da multidão humana que ao meu lado vai.

sou quem a palavra calou,

II

entre meus silêncios

os vendavais vergam-me

o caule vergastado sob cilícios...

my lord, my lord,

why have you forsaken me?

II

e o coração de Cordélia

em tumulto salta,

e Cordélia cala:

palavras não dizem o ser da dor.

II

bem e mal se autoformulam na mesma possessão do ser.

...............  

                                             embrenho-me                                                                                                                                                                      na

                              penumbra         dos bosques

 me embriago

salto em cabriolas

sou Dioniso e sou o Vinho

sou Ninfas sou Sátiros sou Pã

sou o teofânico espetáculo da Vida

 

 A agonia de Cordélia


                                                         escutei-te chamar-me

                                            na tua voz vinha tua matéria-prima 

                                    esse o primeiro momento de tua enunciação

.

teu chamado tinha o som dos moinhos de ventos

no meio do campo abrangente de silêncios

sussurros dentre as entranhas do mundo

.

andei-te corpo e alma

e

 escutei o uivo de abruptos vendavais

em meio ao teu campo abrangente de silêncios

...

não acho as portas de minhas chaves

minha casa sem a casa assoma

nave entrevista no vago

âmago de sombras decompostas

 

lume de relâmpagos acendem

o vento uiva: batem portas, batem janelas, 

a árvore no frontal farfalha em convulsões,

desde o seu interior luta a pobre

para não se dissolver, tornar-se pó

e afundar-se no nada a sua noite

.

sinto o sofrimento da pobre,

tenho pena dela tanta pena

.

as minhas chaves não encontram portas,

nem entrem cá os traços de minha voz assombrada

ao teu vulto vindo de dentro os avessos do mundo

.

I desire mercy

 not sacrifice

.

my lord

 let this cup pass away from me

.

my beloved

 let me pass this cup away from you

II

minha ocupação: apaziguar vendavais.

seja o silêncio... seja...

...

my soul is exceeding sorrowful

even unto death…

……………………………

silence silence silence

be silence my soul

be silence

…….

……

..

 

 O vinho de Cordélia

 

II

a alma rasgada não se recompõe

a vida não retoma o fio

que se rompeu

.

entanto outro fio teço

,

como a aranha

 tiro das próprias entranhas

os fios de minha urdidura.

II

a liberdade do outro não pode me atingir

ainda que os enganos dos meus sentidos precários

em assustamento me transponham à dor

.

isso sofre-se e simultaneamente goza-se

:

desse rito hei de extrair a força interior em mim.

II

passarei os dias a ler

os passos

 que teu corpo desenhou no espaço

livro que vi fluir de ti.

II

O amor só posso querer em liberdade de amor

.

a minha ternura não está no meu dizer ternura,

está entranhada em minha pele

.

e calo o amor que dou.

II

Se é para amar

 amemo-nos com nossas entranhas

.

o meu retrato não fulgura nos teus olhos

,

sou-te silhueta indecisa que já se decompôs,

II 

 

a livre libido do ser

que dispõe de si

o ser que é

as frívolas janelas abrem olhos atrás de pálpebras rotas

concentrada nas fronhas de meu próprio olhar

ouço em meio a minha cumulada dor

soar  os passos de minhas delícias

são minhas árias de estar

no meu oceano de estrelas

salve

 ó deuses

em vossas aras

bebo o meu triunfo

..................................................................................................................................................

Vilma Silva


 

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